Hélia Correia

Hélia Correia

BIOGRAFIA

Hélia Correia (n. 1949) é uma escritora e dramaturga portuguesa, reconhecida pela riqueza poética e pela originalidade da sua prosa. Nascida em Lisboa, licenciou-se em Filologia Românica na Universidade de Lisboa e iniciou a carreira literária nos anos 80. A sua obra abrange romance, conto, poesia e teatro, frequentemente inspirando-se na mitologia grega e em figuras femininas fortes. Livros como Lillias Fraser (2001) e Adoecer (2010) revelam a sua sensibilidade para a condição humana e o papel das mulheres na história. No teatro, reinterpretou mitos clássicos, dando-lhes nova vida e perspetiva contemporânea. Recebeu diversos prémios, incluindo o Prémio Camões (2015), distinção máxima da literatura em língua portuguesa. Hélia é também conhecida pela postura discreta e pela recusa de protagonismo mediático, preferindo que a sua obra fale por si. O seu estilo, lírico e rigoroso, consolidou-a como uma das vozes mais singulares e influentes da literatura portuguesa contemporânea.

MANHÃ DE AGOSTO

ISABEL DE SÁ

Nesta manhã de Agosto
encontrei o papel onde tinha escrito
a idade em que Blaise Cendrars
perdeu a mão direita
e fiquei a sentir a dor
que me atormentava. Não tomei aspirina
nem esqueci a tua carta
de ontem, aquele momento
em que dizes eu querer
arrastar-te comigo “para esse universo
onde a vida é trocada por palavras”.

Tenho lido os poetas
da minha geração. Conheço
o primeiro poema, aquele que inaugurou
a vida, também em mim.
Cansada de ir à praia, à piscina,
procuro livros, uma emoção linguística,
o verso desconhecido.
Guardei uma frase de Musil, na caixa
onde tenho os selos, um minúsculo relógio
que decidi não usar.

Não posso viver sem a música de Schubert,
ou aquela peça de Brahms – tudo isto
são palavras, a vida passa-se lá fora,
o Inverno há-de vir e não poderei
totalmente fugir ao desconforto.

Falava-se de As Túlipas
e começo a entender. Esta música,
estas palavras, a morte na dobra do lençol,
meu frio corpo na penumbra, no paraíso inicial
da anestesia. Perdida a razão no inferno
da dor, a cabeça irreal, meu poema
esquecido na margem do sono. A morfina,
as enfermeiras, tudo o que pudesse
polir o tormento.

E hoje acabei
por tomar aspirina, gastar o rosto,
permanecer em casa.

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